Corridas de charretes no imperio romano

O que sobrou foi a parte cerimonial focada no imperador. Um novo imperador ainda compareceria ao Hipódromo para ser saudado por uma grande multidão, mas a relação entre as corridas e a cerimônia se tornaram menos óbvias. Em Roma, as pessoas compareciam ao Circus pelas corridas, e o contato com o imperador era apenas uma característica desta experiência. Em Constantinopla, o significado do cerimonial em torno do imperador cresceu grandemente a partir do sec. V d.C. Anteriormente, as corridas eram cruciais, e não importava quão popular fosse o imperador, sem as corridas haveria muita dificuldade em encher o Hipódromo.

Tiberius II mudou a relação entre a cerimônia e as corridas. O contato entre imperador e povo passou a ser o clímax do dia no Hipódromo, e as corridas foram reduzidas a ser seu acompanhamento. As corridas passaram a ser mais sóbrias, e o entusiasmo do público menos exuberante. Os Verdes e Azuis continuavam a comparecer ao Hipódromo e a manifestar suas opiniões em voz alta, mas mais como uma reação ao comportamento do imperador do que ao desempenho dos condutores e resultados das corridas. O imperador Phocas, em 609, foi insultado pelos Verdes por estar intensamente bêbado ao assistir as corridas, perdeu contato com a realidade ao se sentir insultado e lançou um ataque punitivo que custou aos Verdes muitas vidas.

Confrontos como este ocorreram com grande regularidade. Mas tumultos surgindo diretamente da rivalidade entre Verdes e Azuis surgidos do circuito já não eram mencionados. Dificilmente apareciam menções sobre corridas excitantes. Muito antes da conquista cruzada de Constantinopla em 1204, as corridas foram reduzidas a um mínimo, um espetáculo que deixou uma rica história para trás e não era mais parte de uma programação de eventos irresistíveis.

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Após mais de duas semanas de parada, graças ao que parece ser uma retomada da economia e aumento de trabalho, vamos ao último capitulo.

Parte 11 - Ben-Hur e as corridas nos filmes

Corridas de quadrigas e Ben-Hur (1959). Para muitos, ambos são inseparáveis. A cena de corrida de charretes no cinema foi tão fascinante que ainda é lembrada décadas depois da exibição do filme.
Ben-Hur foi exibido repetidamente na televisão, e depois disponibilizado em vídeo e DVD, e mais e mais pessoas puderam assistir à sequencia da corrida do filme.

O filme foi baseado em uma novela de mesmo nome, escrita por Lew Wallace, advogado e general do exército, que serviu na Guerra Civil (1861-65). È uma história longa e sentimental, ambientada na época de Jesus, no cenário do judaísmo e da poderosa Roma. O tema principal é o confronto entre o bem e o mal. Judah Ben-Hur, um judeu, é a personificação da virtude, enquanto que Messala, um romano, representa o mal (na corrida, Ben-Hur usa os tradicionais cavalos brancos de mocinho, o Messala, igualmente tradicionais cavalos negros de bandido).

Na história, Ben-Hur e Messala são amigos de infância, mas crescem em lados opostos; Ben-Hur é dedicado à causa judaica, enquanto Messala está do lado do imperialismo romano. Messala percebe que Ben-Hur não será útil, e após um incidente o acusa de subversão, o qual é condenados às galés. Depois de três anos remando pela frota romana, salva o consul Quintus Arrius, que, agradecido, o leva a Roma e o adota como filho. Mas Ben-Hur deseja voltar para a Judéia, para encontrar a família e a noiva, e ao chegar a Jerusalém encontra apenas esta última. Furioso, encontra Messala, agora em uma posição de poder como filho de Arrius. Sua rivalidade se reinicia.
Ocorre a corrida de quadrigas, na qual competem entre si. Ben-Hur vence, e Messala é morto.

Então procura sua mãe e irmã, as encontrando no vale dos leprosos, ao mesmo tempo em que Jesus é crucificado. Miraculosamente seus parentes se curam da lepra. Ben-Hur se reúne à sua família, rejeita sua herança romana, e faz parte da primeira comunidade cristã.

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Quando Ben-Hur foi publicado, em 1880, poucas pessoas esperavam que o livro vendesse bem, mas após seis meses encontrou seu público e chegou a um triunfo inesperado. Ben-Hur conquistou os Estados Unidos e Wallace se tornou um autor famoso. Um ano após a publicação, o presidente Garfield o enviou para a Turquia aparentemente como enviado especial, mas na verdade para ver com seus próprios olhos as partes do mundo mediterrâneo que descreveu em seu livro sem tê-las visitado.

Em 1899 Wallace teve a satisfação de ter uma peça baseada em Ben-Hur ensaiada na Broadway, provavelmente o apogeu de um romance antes da invenção do cinema. A produção foi um grande sucesso, sendo continuamente encenada até 1920. Até incluía uma simulação de corrida, exibida em uma espécie de esteira circular.
Um Wallace já idoso, ao assistir atores interpretando seu trabalho, exclamou espantado, “Meu Deus, fui eu quem iniciou isso tudo?”.

Na novela de Wallace, o confronto da corrida no Circus de Jerusalém é mais um de uma série de climaxes. Mas nos três filmes, exibidos em 1907, 1925 e 1959 (apenas em 2016 foi realizado um quarto filme) , e a corrida de charretes que é o absoluto clímax. Na primeira versão, de apenas uns 20 minutos de duração, o diretor Sidney Olcott conseguiu filmar sua corrida de charretes, mas sem circuito e apenas 20 espectadores, com suas cenas algo rudimentares mostrando apenas alguns minutos de corrida, mas estabelecendo o tom espetacular para ação em filmes.

Em 1925, Ben-Hur foi filmado novamente, também com ênfase na corrida. Hollywood já possuía considerável experiência, e o diretor Fred Niblo tirou grande proveito disso. Foi construído um circuito de corrida, com 42 câmeras de diferentes ângulos, e dublês contratados para tornar as corridas mais realistas. Este Ben-Hur atraiu grandes audiências, passando não só nos Estados Unidos, mas também na Europa, para aborrecimento de Mussolini, que baniu o filme na Itália. É claro que um romano não deveria ser vencido por um judeu em seu próprio espetáculo.

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Em 1959 surgiu a terceira versão de Ben-Hur, dirigida por William Tyler. O diretor focou sua atenção nas sequencias espetaculares da corrida, e da batalha naval. A sua sequencia da corrida de quadrigas fez um impacto tão grande que Ben-Hur e corridas de charrete ficaram inseparáveis na mente dos espectadores desde então.

O orçamento à disposição de Tyler, de 15 milhões de dólares, era uma grande soma na época, e possibilitou a criação de um circo romano apropriado, completo com uma “spina” ricamente decorada, charretes verdadeiras, e atores (ou dublês) que ficaram três meses inteiros realizando performances em frente às câmeras. O resultado foi realmente impressionante, uma corrida com a duração de 9 minutos, aproximadamente o tempo em que uma corrida real de sete voltas seria realizada no Circus Maximus, completa com colisões e trapaças. Depois de mais de meio século, esta cena não perdeu nada de seu poder.

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Eu gosto bastante, apesar de achar meio exagerado o status q ele ganhou com o tempo. Mas é bom :slight_smile:

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No filme, na cena da corrida, Ben-Hur (Charlton Heston) e Messala (Stephen Boyd) levam suas charretes até a linha de partida junto com sete outros competidores. São representantes de províncias ou cidades do império: Alexandria, Messina, Cartago, Chipre, Roma, Corinto, Atenas, Frígia e Judéia. Os cavalos esperam impacientemente atrás de uma linha, e então é dada a largada. Messala imediatamente atinge a liderança. Uma das charretes tenta dar a volta muito próxima do pilar e colide.

A câmera foca em Messala, Na segunda volta, ele realiza manobras e desvios com sua charrete especial, que conta com lâminas serrilhadas se projetando de suas rodas. Estas atingem as rodas da charrete cipriota, que abandona a corrida. A charrete mal tem tempo de ser removida do circuito, quando Messala ataca sua próxima vítima, desta vez a charrete coríntia; seu condutor é derrubado e arrastado pelo circuito. Ele consegue se soltar e escapar dos cascos dos cavalos atrás dele, mas não do seguinte. Ele é então resgatado pelos auxiliares que o removem do circuito. Estes tem bastante trabalho, pois Messala novamente força um rival a abandonar a corrida, desta vez a charrete frígia, que em seu esforço para evitar as lâminas se aproximou demais da Spina e colide.

Até esse ponto Ben-Hur permaneceu atrás. Ele é mostrado ocasionalmente em close-up, parecendo realizar grande esforço. Mas quando as charretes ateniense e cartaginesa colidem e Ben-Hur não é capaz de evitá-las, ele volta a ser o protagonista. Sua charrete é arremessada para o alto pelo forte solavanco, e ele perde o equilíbrio e cai, embora ainda consiga se agarrar na charrete. Com um imenso esforço, consegue escalar sua parte frontal e voltar a seu posto. Na sexta volta, começa a real batalha entre Messala e Ben-Hur. Ben-Hur se adianta e chega próximo a Messala, ameaçando sua liderança. Messala faz tudo o possível para forçar seu inimigo para fora da pista. Ele tenta cortar as rodas da charrete de Ben-Hur com suas lâminas, mas este consegue evitá-las com uma série de hábeis manobras, embora perca uma parte da estrutura de sua charrete.

Então chego o clímax da corrida. No seu frenezi, Messala ataca Ben-Hur com seu chicote, que consegue se defender e agarrar. Se segue um jogo furioso de empurrões e puxões. Finalmente, Messala parece estar vencendo quando suas lâminas chegam perigosamente próximas das rodas da charrete de Ben-Hur e ameaçam arrancá-las. Mas elas não o fazem. Elas colidem com a madeira mais dura do eixo, e ficam presas. A charrete de Messala é levantada, arremessando-o para longe. A competição acabou. Messala é arrastado por sua quadriga, e após certo esforço consegue se libertar das suas rédeas, mas no final é atropelado pela charrete de Alexandria.

O final da corrida mostra Ben-Hur vitorioso, o qual, após cruzar a linha de chegada, passa por Messala, ainda consciente mas mortalmente ferido.

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A corrida de charretes foi magnificamente filmada, mas terá sido uma reconstrução fiel historicamente? Será que os roteiristas e cineastas sinceramente tentavam reproduzir as práticas romanas tão acuradamente quanto possível? Ou será que perceberam que haviam grandes diferenças entre as práticas romanas e gregas de corrida, e já que esta foi ambientada em Jerusalém, na parte oriental do Império Romano, decidiram dar asas à imaginação?

A solução encontrada foi escolher o mais espetacular, e suas escolhas foram intermediárias entre as duas formas de corrida. Elementos dos dois tipos de evento, Grego e Romano, foram escolhidos alternadamente, e adotados sem prestar muita atenção às dificuldades de conciliar as duas tradições.

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O estádio no qual a corrida realizada é tipicamente romano. Os assentos, o circuito, a spina, tudo remanescente de um circo romano. A linha de partida foi menos realista, faltando os estábulos de partida que acomodavam as quadrigas ao partir. O circuito, em compensação, parece extremamente autêntico.

Como os romanos de dois mil anos atrás, foi necessário lidar com o problema da poeira. Era necessário que os cavalos atingissem sua máxima performance sem que levantassem enormes nuvens de poeira, que dificultariam a apreciação do espetáculo. Primeiro experimentaram colocar 25 cm de grãos maiores de pedra e cascalho, e 20 cm de areia amarela por cima. No primeiro dia, verificaram que os cascos dos cavalos afundavam e não conseguiam acelerar. Tudo foi removido, exceto por 4 cm de cascalho, que provou ser espesso e macio o suficiente para dar estabilidade aos cavalos. Não foi encontrada uma solução para o surgimento de nuvens de poeira fina, e o circuito foi regado com água com regularidade mas moderação, para reduzir o problema, já que um solo encharcado frearia demais os cavalos. Todos os condutores tiveram de usar lentes de contato protetoras especiais. Não se sabe realmente como os romanos lidavam com o problema.

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As charretes usadas no filme não eram romanas nem gregas. Os veículos de corrida da antiguidade eram pequenos e muito leves, pesando menos de 35 kg, enquanto os utilizados no filme pesavam mais de 200 kg. Os romanos possuíam dois tipos de charretes; a verdadeira charrete de corrida, e a charrete triunfal, muito maior. Para a filmagem foi escolhida a charrete mais imponente, e feitas ainda mais pesadas, com uso de tubos de aço e placas grossas de madeira, ao invés dos materiais mais leves descritos em capitulo anterior. Com charretes assim, os cavalos só conseguiam correr em alta velocidade por uma ou duas voltas antes de ter que descansar, ao invés das sete voltas de uma corrida completa.

Talvez um dos motivos para esta escolha teria sido a segurança dos atores e dubles, já que as charretes leves eram mais sujeitas a arremessar para longe seus condutores; na antiguidade vários condutores famosos morreram desta maneira. Esta escolha foi facilitada pela seleção dos cavalos; 78 grandes cavalos adquiridos na então Iugoslávia, muito maiores do que os cavalos da antiguidade. Os cavalos de Ben-Hur, Lippizaners puro-sangues de cor branca eram particularmente impressionantes.

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Não q seja exatamente novidade fazer isso em filmes “históricos”…

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Embora o circo pareça ser romano, a corrida se desenvolve perante os espectadores ao estilo grego. Os condutores tem aparência helênica, com mantos coloridos de influência oriental. Apenas Ben-Hur tem uma vestimenta romana, com couraça, adaga e elmo de couro, o qual, notavelmente, ele remove logo antes da corrida. Todos os nove condutores correm no estilo de participantes dos Jogos Olimpicos (e de corridas da região de estilo grego), com as rédeas seguras em ambas as mãos ao invés de envoltas em torno do torso como no estilo romano.

Talvez o ponto mais notavel seja o fato de que os competidores vêm de diferentes e distantes regiões, e competem pela honra individual, ao invés de pertencerem a um estábulo de corrida como em Roma. O que é lógico, pois as factiones ainda não haviam sido estabelecidas no oriente no sec. I a.C. O fato de não haver colaboração entre condutores aumenta a excitação da corrida, cada um corre contra todos os outros.

Nada é dito a respeito da posição social dos rivais de Ben-Hur. Parece claro que nem todos dentre eles devem ter sido escolhidos entre os escravos e libertos. Ben-Hur, filho adotivo do Consul Quintus Arrius, na verdade pertence à elite aristocrática; em Olímpia ele não estaria deslocado entre os competidores, mas em Roma ele teria descido para dentro da arena apenas antes de sua adoção, enquanto escravo de Quintus Arrius.

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Durante a corrida, muita coisa acontece, as quais não poderiam ter acontecido nem em uma corrida ao estilo grego, nem no estilo romano, e que é inteiramente produto da imaginação de Lew Wallace e de seus roteiristas e escritores.

Chicotear cavalos do oponente e levar sua charrete para empurrar a de seu oponente para fora do percurso eram consideradas táticas permitidas; mas Messala usa outras práticas que não seriam toleradas em circuito algum. Instalar lâminas, que se projetariam das rodas, apenas para eliminar seus oponentes na corrida atrairia imediatamente a atenção dos juízes, e resultaria na eliminação de sua charrete. Caso por algum motivo permanecesse na corrida, o público vaiaria e protestaria, exigindo a remoção desta charrete; ou até invadir a pista e linchar o condutor infrator. Seria até concebível que a turba se voltasse contra a comissão organizadora, com o risco de se iniciar um tumulto maior além da arena.

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No filme, nada disto importa, e os espectadores se entusiasmam, não importando se os condutores trapaceiam ou não. A charrete com lâminas rotativas combina perfeitamente com o maligno Messala. Esta é a diferença entre realidade e ficção, entre os verdadeiros condutores do mundo antigo e os heróis imaginários das telas.

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Com isso, este modesto trabalho esta concluído. O que sobra é uma reflexão sobre como as coisas são levadas pelo tempo. As corridas de quadrigas duraram séculos e então acabaram; quanto tempo será que os esportes modernos existirão, assim como seus clubes e modelo de funcionamento? Muitos clubes de futebol famosos completaram seu primeiro século de existência, será que existirão por mais muito tempo? Será que os esportes mudarão até não serem mais prontamente reconhecíveis por um espectador moderno?
De qualquer maneira, ainda lembramos das corridas que foram realizadas no Império Romano.

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“Liberdade criativa”. Não que seja inteiramente ruim, e não tira o mérito do filme, apesar de ser incongruente historicamente.

Se sobrevivermos mais dois mil anos, certamente… muitos mudarão, como as corridas de bigas se tornaram o automobilismo, outras serão “esportes diferentes”, como o são a esgrima e a arquearia atualmente.
Enfim, bela iniciativa de traduzir tudo isso, parabéns @MBHM :clap: :clap: :clap:

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Há quase 5 anos atrás, foi feito um trabalho parecido, com gladiadores. Que tal continuar?

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Hum hum. Bem, isto pode ser feito, mas daria pelo menos o dobro do trabalho que deu para as quadrigas.
Em 2015, queria fazer isto, mas percebi que não teria tempo, e realmente, se passaram meses sem fazer nada. Só consegui fazer as quadrigas por causa do tempo livre dos lockdowns vários do vírus maldito.
Na verdade estava pensando em fazer um trabalho sobre astronomia, quem sabe Marte. Mas vou reler o livro dos Gladiadores e contemplar esta possibilidade. Não ouso calcular o tempo que levaria este projeto, talvez cinco anos. A não ser que ocorram novos lockdowns …
:nauseated_face:

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Achei um video no YT, lembrei do tópico
Como sobreviver no Circus Maximus, em inglês

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Vai mais esse para lista :grin:

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O que sobrou do Hipódromo em Istambul / Constantinopla

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